Um processo em curso, encabeçado por grupos empresariais que procuram constituir-se
como “reformadores”, pode vir a alterar profundamente a estrutura da educação pública
no Brasil, por intermédio da privatização da gestão (a exemplo do que já ocorre na saúde)
e pelo avanço de práticas de natureza mercadológica, como a competição entre escolas.
Trata-se da lógica do capital, abrindo brechas por meio de institutos e fundações privadas
em todas as esferas de governo, até mesmo no Ministério da Educação (MEC). Quem faz
a advertência é o professor Luiz Carlos de Freitas, diretor da Faculdade de Educação da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
A interpretação enviesada dos resultados do Programa Internacional de Avaliação de
Alunos, mais conhecido pela sigla PISA — um sistema que mede o nível educacional de
jovens de 15 anos por meio de provas de leitura, matemática e ciências — tem sido um
dos instrumentos principais empregados por grupos de reformadores empresariais como
“Todos pela Educação” e “Parceiros da Educação” para justificar seus projetos.
O PISA é realizado pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico
(OCDE), “herdeira do Plano Marshall”, nas palavras de Freitas. O Plano Marshall foi um
programa econômico de recuperação dos países europeus devastados pela 2ª Guerra Mundial,
concebido e executado pelos Estados Unidos da América (EUA) a partir de 1947, e foi
fundamental para a hegemonia econômica norte-americana. A OCDE, na época “Organização
para a Cooperação Econômica Europeia”, foi criada para coordenar o Plano Marshall.
Os resultados obtidos pelo Brasil no PISA levam esses reformadores empresariais a defender a
necessidade de mudanças profundas no sistema educacional brasileiro. Na visão do professor
Freitas, essa rede de grupos empresariais é bem articulada, envolve desde a cooptação de
profissionais da educação para respaldar suas ações, passando pelo convencimento da
sociedade civil por meio da mídia, até a introdução de seus representantes em equipes de
governos (municipais, estaduais e federal), de modo a lidar diretamente com a definição
de políticas públicas de educação. Na esteira desse projeto de reforma segue a “indústria da
educação”, composta por empresas que prestam serviços de avaliação da qualidade de ensino,
de consultoria, de gestão (de escolas) e de apostilamento de conteúdo aplicado aos alunos.
Freitas, contudo, desconstrói o discurso dos “reformadores empresariais” brasileiros,
pois nos Estados Unidos (EUA), onde as políticas propostas por seus congêneres
vigoram há três décadas, a qualidade de ensino permanece estagnada, e o sistema
público foi, segundo ele avalia, destruído.
“Nova Iorque publicou agora a avaliação
de 18 mil professores no jornal da cidade, com nome e tudo. A idéia é desmoralizar o
professor. Fragilizá-lo. Isso é um pacote que inclui também o apostilamento das redes,
que é outra indústria, fortíssima, que fornece apostilas para as redes”.
O desdobramento desse tipo de visão é que, para seguir apostilas em salas de aula, não há
necessidade de professores muito capazes: “Não entendem o professor como profissional,
mas como um tarefeiro, pode até ser um tutor, nem precisa ser professor. Para isso, então,
se tiver uma pessoa movida a bônus e uma apostila, é o suficiente. Acredito que estamos
vivendo um processo que, se prosseguir, vai destruir o sistema público de educação brasileiro,
como destruiu nos EUA”, avalia o professor nesta entrevista concedida a Michele da Costa."
Revista Adusp. O sr. afirmou,
em debate sobre o Plano Nacional
de Educação (PNE) 2011-2020, na
USP, que a educação passou a ser
vista pelo empresariado brasileiro
como um dos elementos centrais na
reprodução do capital, o que levaria
os empresários a disputar a agenda
educacional e colocá-la a serviço do
processo produtivo. Quais são as
implicações desse agendamento?
Como isso repercute na oferta de
ensino pelo poder público?
FREITAS. O fato novo nesse
processo não é exatamente essa relação
entre educação e o processo
produtivo, mas a posição que o
Brasil está assumindo no contexto
internacional. É isso que tem alterado
e produzido algum impacto
no campo da educação, na medida
em que o processo de desenvolvimento
passa a contar com maciço
investimento produtivo direto no
Brasil. Nós tivemos, no último ano,
algo na casa dos US$ 67 bilhões
em investimentos produtivos que
ingressaram no Brasil. Isso, aliado
a outros fatores, produz uma atividade
econômica mais elevada e
que passa a demandar um volume
de mão-de-obra em algumas áreas
maior do que no passado, melhor
infraestrutura (portos, estradas, aeroportos),
mas o que interessa no
caso da educação mais diretamente
é a questão da mão-de-obra.
Essa demanda por mão-de-obra
aparece como um clamor pela melhoria
da qualidade de ensino, mas
isso tem que ser visto com cautela.
Na realidade, quando os empresários falam em melhoria da qualidade
de ensino o que está em jogo é
melhorar a relação oferta-procura
de mão-de-obra. Significa que se
você tem pouca mão-de- obra para
uma determinada área, ela custa
mais caro; se você tem muita, barateia.
Claro que os processos produtivos
estão mais complexos e isso
também demanda uma melhoria
em algumas habilidades típicas do
ensino fundamental.
Então, quando o empresário fala
em melhoria da qualidade de ensino
ele está pensando em número de
formandos, porque o aumento desse
número produz uma redução na massa
salarial gasta. Quando há poucos
candidatos para uma vaga o salário
tende a aumentar. Isso não significa
dizer que algumas das pessoas contratadas,
quando melhor qualificadas,
não possam receber mais. O salário
individual até pode ser melhorado,
no entanto a massa salarial global
é menor. Há estudos sobre isso nos
EUA e no Brasil (IBGE), mostrando
que nos últimos dez anos no Brasil,
na medida em que aumentamos o
número de formandos, houve redução da massa salarial paga.
Esse processo que estou simplificando
aqui, que é mais complexo do
que isso portanto, tem muitas outras
variáveis, traz uma nova realidade:
demandas, pressão sobre os vários
níveis educacionais, desde a pré-
escola até o ensino superior. Além
disso, existem pressões que estão
sendo criadas por determinados órgãos
internacionais para enquadrar
os países em determinadas lógicas
de reforma educacional. Hoje uma
dessas instâncias internacionais é
a Organização para Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE),
e não é sem razão que se vê
que quem agora controla a qualidade
da educação no mundo é um
organismo ligado aos empresários e
não a órgãos tradicionalmente ligados
à educação, como por exemplo
a Unesco. Quem faz o PISA, Programa
Internacional de Avaliação dos
Estudantes, é um organismo controlado
pelos empresários, a OCDE,
herdeira do Plano Marshall. Que é
agora quem nos diz se um país tem
qualidade de ensino ou não.
“Essas políticas estão
querendo induzir no Brasil
que nós acreditemos que nota
alta em teste é sinônimo de
boa educação. E isso é uma
falácia... depende do que se
entenda por educação, do que
é medido e de como é medido”
Revista Adusp. E isso já está
presente no Brasil?
FREITAS. Está, porque, se você
pegar o Plano Nacional da Educa-
ção (PNE) que vai entrar em vigor,
vai ver que as metas educacionais
do País foram ajustadas segundo
expectativas que o país tem em relação
ao seu desempenho no PISA,
que é organizado pela OCDE. Então,
de certa forma, o que o novo
PNE vai fazer é oficializar que a
OCDE é a instância que certifica a
qualidade da educação no Brasil,
na medida em que o Brasil será ou
não melhor em qualidade de educação
ao se aproximar ou não da
meta prevista no PISA. Ora, o que essas políticas estão
querendo induzir no
Brasil é que nós acreditemos
que nota alta
em teste é sinônimo de
boa educação. E isso é
uma falácia... depende
do que se entenda
por educação, do que
é medido e de como é
medido. Portanto, não
há essa relação unívoca entre nota alta e
qualidade do ensino,
especialmente se pensarmos
que a nota é
produto de testes em
apenas duas disciplinas
(português e matemática),
quando muito
incluiria ciências, e a
educação não se reduz
apenas a um processo
cognitivo, centrado
nestas três disciplinas.
É muito mais ampla,
pretende desenvolver
a criatividade, a afetividade,
a formação
corporal, ou seja, há dimensões outras
para nós cuidarmos no desenvolvimento
do indivíduo que não
se limitam às provas de português,
matemática e ciências. Isso é uma
parte da formação que esses órgãos
internacionais estão vendendo como
se fosse completa.
Claro, essa situação interessa e
satisfaz aos empresários, mas que
projeto nós temos para a nossa juventude?
Tem de ser muito mais
amplo do que aquilo que os empresários querem. Nós podemos até incluir
o que os empresários desejam
no nosso projeto, mas infelizmente
o que está em curso, ao contrário,
é a redução dos objetivos da educa-
ção ao que apenas os empresários
desejam, e isso é inaceitável.
Revista Adusp. O que o senhor
está dizendo é que dessa maneira
não seria democrático, certo?
FREITAS. Nada democrático.
Essas pressões de caráter econômico,
a própria mudança de controle
do sistema educacional, esses monopólios
montados por essas organizações internacionais estão criando no
Brasil uma corrente educativa, uma
vertente educacional que nós temos
chamado de “reformadores empresariais
da educação”,
parafraseando educadores
norte-americanos
que tiveram que cunhar
essa expressão para dar
conta do mesmo fenômeno que nós estamos
vivendo aqui agora e
que atingiu os EUA nas
últimas três décadas e
devastou o sistema público de educação americano.
Não é democrático colocar a educação
apenas a serviço dos
empresários. Há mais
agentes na sociedade.
Revista Adusp. Os
resultados foram ruins
nos EUA?
FREITAS. Pois é, isso
é o que qualquer pesquisador
sério deveria se
perguntar. Ou seja, se
nós temos um país que
exercitou durante três
décadas essas políticas
educativas que agora são
veiculadas pela OCDE
e outros como a panaceia, que são
introduzidas no Brasil em alguns Estados,
municípios e defendidas por
alguns setores, tanto empresariais
quanto educacionais, o que se colocaria
como óbvio seria examinar quais
foram os resultados dessa iniciativa
que já existe neste país desde 1983. É
um pouco o que tenho feito. Tenho
procurado acompanhar o desenvolvimento
disso nos Estados Unidos.
Depois de três décadas, desenvolveu-se
nos EUA um conjunto de
educadores profissionais, pesquisadores
que hoje já têm uma posição
do que isso causou à educação americana. Isso já está disponível. Já
existe uma reflexão nos EUA, que
infelizmente os nossos reformadores
empresariais não divulgam aqui,
mas que precisamos tornar pública
para que os formuladores de políticas
não pensem que não temos
outras alternativas.
]
“Os EUA não apresentam
melhoras significativas nas
avaliações internas que
evidenciem uma melhoria
na sua educação. Então,
de onde vem a ideia de que
se eu importar as soluções
americanas (ou chilenas)
nós melhoraremos a
situação brasileira?”
Podemos usar a própria lógica
que os reformadores empresariais
usam para constatar a ineficácia
dessas políticas. Já que a OCDE
é a meca da qualidade de ensino,
como estão os EUA no PISA? O
PISA tem dez anos, nesses dez anos
os EUA não mudaram sua posição, estão estagnados. Não apresentam
uma evolução positiva, seja
na leitura, seja na matemática. Se
é tão bom assim eles deveriam ter
melhorado no PISA, porque a insatisfação
nos EUA em relação à
educação, até mesmo dos próprios
empresários, é grande. Dez anos é
um tempo razoável para que essas
medidas tivessem surtido efeito. Se
considerarmos que foi também nos
últimos dez anos (desde 2002) que
recrudesceu a política dos reformadores
empresariais nos EUA, então
já houve tempo suficiente para que
os resultados aparecessem.
Se não quisermos ficar com a
medição da OCDE, podemos pegar
o que equivaleria lá à nossa Prova
Brasil (o NAEP, que é o indicador
oficial da qualidade da educação nos
EUA). E não é diferente. Os EUA
não apresentam melhoras significativas
nas suas avaliações internas
que tenham evidenciado uma melhoria
na sua educação. Então, de
onde vem essa ideia de que se eu
importar as soluções americanas (ou
da sua sucursal chilena) nós melhoraremos
a situação brasileira?
No entanto, pode-se constatar que
além de não ter produzido melhoria,
produziu outros efeitos deletérios lá
que não são desprezíveis. Por exemplo,
essas medidas destruíram o sistema
público de educação americano e
o abriram à privatização desenfreada.
E aí você gerou uma plêiade de corporações
empresariais faturando.
Revista Adusp. Ou seja, nos
EUA a educação pública passou a
não satisfazer e as pessoas passaram
a procurar a iniciativa privada?
FREITAS. É pior, porque foi uma
mudança na própria relação público privado.
No Brasil, nós temos uma
separação clara entre o público e o
privado. Existe o privado, onde o
indivíduo constrói a escola, contrata
o professor e cobra do aluno. E
o público, onde o Estado constrói,
paga o professor e mantém a escola.
O que observamos nos EUA, na
educação básica, é que entre essas
duas soluções foi criada uma terceira:
a privatização por concessão. É
o público gerenciado pelo privado,
mas mantida sua condição de público
e de gratuidade para o aluno. É
uma administração por contrato de
gestão, então é a gestão da escola
pública que está sendo privatizada,
um caminho de privatização aberto
por meio das políticas públicas dos
reformadores empresariais.
Outra modalidade de privatização é o voucher ou cheque-educação, em que o dinheiro é dado ao
pai, que escolhe o ensino privado
ou público e entrega o cheque para
a escola que escolheu. Essa é uma
outra linha de privatização forte.
Nenhuma dessas alternativas, nos
estudos dos pesquisadores norte americanos
independentes, mostra
que houve uma melhoria na qualidade
de ensino. A diferença entre as
escolas que permaneceram públicas e
as com gestão privada não evidencia
consistentemente que as escolas com
administração privada são melhores,
com o agravante de que essas escolas
com gestão privada tendem a escolher
alunos, porque elas têm contratos
que regem a relação com a criança e com os pais. Como a demanda
é maior do que o número de vagas,
fazem sorteio, inclusive para compor
a sala. Só aí já há um processo de seleção
“natural” porque nem todos os
pais, principalmente os mais pobres,
se dispõem a concorrer.
Além disso, elas têm regras,
contrato, e podem devolver os alunos
para a escola pública, como as
nossas escolas privadas fazem aqui.
Quando um aluno não vai muito
bem, lá pelo meio do ano a escola
privada chama os pais e os aconselha
a encontrar uma outra escola
Fundamentalmente empresas
de avaliação e empresas de
consultoria, além das operadoras
de escolas charters, via
contrato de gestão.
Tem uma brincadeira nos
EUA com um programa implantado
em 2002 e que chamava-se
“Nenhuma criança
deixada para trás”. Essa lei de
responsabilidade educacional
americana oficializa a política
dos reformadores empresariais
nos EUA e, ao mesmo tempo,
cria todas as condições para a
privatização. Por isso, a brincadeira
que se faz com o nome
é que pode ser lido como “Nenhum
consultor deixado para trás”,
porque há um batalhão de consultores
envolvidos nas secretarias e
escolas. Não produziu os efeitos que
se esperava, a melhoria da qualidade
educacional, mas produziu muito
lucro. Tem muita gente ganhando
dinheiro em cima dessa ideia.
Revista Adusp. Aqui no Brasil já
existe uma participação grande da
iniciativa privada, principalmente nas
universidades, então a novidade seria
esse novo eixo de prestadores de serviços
e talvez até essa oportunidade
de concessão. Já existe alguma coisa
encaminhada nesse sentido?
FREITAS. A educação infantil
já tem sido objeto de operação por
concessão, alguns municípios já têm
acordo com entidades filantrópicas,
ongs, organizações sociais sem fins
lucrativos etc., a coisa está pronta
para ser operada em todos os ní-
veis, embora tenha operado muito
mais no ensino infantil até agora.
O pessoal da área da saúde já vive
essa realidade de operação por concessão, hospitais inteiros são concedidos
à iniciativa privada, operados
por gestão, então isso tem se
desenvolvido no Brasil desde a era
Fernando Henrique [Cardoso, ex-presidente].
Todo o aparato jurídico
está pronto, mesmo as parcerias
público-privadas [PPP’s], está tudo
pronto para operar.
No mais, o próprio Conselho
Nacional da Educação oficializou
agora o que chama de Arranjo de
Desenvolvimento Educacional
(ADE). E esses arranjos permitem
que conjuntos de municípios se articulem
por recursos provenientes da
iniciativa privada e do Estado. Claro
que os empresários nesses ADEs
insistem que querem pôr dinheiro e
não tirar, mas por trás deles existe a
indústria educacional que será contratada
dentro desses arranjos.
A gente esperava que no
Brasil o MEC, sob o governo
do PT, estivesse atento a
esses processos. Mas, em
recente troca, o MEC levou
lá para dentro pessoas do
‘Todos Pela Educação’ para
ocupar postos importantes,
com a responsabilidade pela
formulação da política da
educação básica”
Foi o Movimento “Todos pela
Educação” que emplacou os ADEs
no Conselho Nacional de Educação
com o discurso de que não querem
dinheiro do Estado — até puseram
na lei isso. Por exemplo, o magnata
[Jorge] Gerdau, do Grupo Gerdau,
assessor da presidenta Dilma e coordenador
do “Todos pela Educação”, diz que trabalha para ajudar
o governo Dilma mas não quer salário
nenhum, que está trabalhando
pelo país. Eu acredito, mas ele não
está sozinho nisso. Há outros empresários,
obviamente, que estão
faturando nesse processo pela ampliação
de mercado educacional pela
via da privatização e prestação de
serviços. O caso mais desenvolvido
que conheço é o do Estado de São
Paulo, onde um conjunto de fundações se organizou para “dar de presente”
à Secretaria de Educação do
Estado de São Paulo a consultoria
da Mckinsey&Company, uma consultoria
internacional que opera em
mais de 140 países, em várias áreas,
inclusive a educacional, e hoje está
lá dentro da Secretaria organizando
a política educacional, com pagamento
feito por meia dúzia de fundações
privadas brasileiras.
Então você nota que começam
a se estabelecer relações bem pró-
ximas entre financiamento privado,
doações e o poder público, que aqui
no Brasil ainda não se desenvolveu
na mesma amplitude que nos EUA.
Revista Adusp. Neste contexto,
qual o próximo passo, caso não haja
uma intervenção da sociedade?
FREITAS. O que a gente esperava
é que no Brasil o Ministério da
Educação, sob o governo do PT, portanto
com uma visão de esquerda,
estivesse atento para esses processos
e que pudéssemos nos contrapor a
essas políticas que estão sendo gestadas,
mas infelizmente não é o que
temos observado. Em recente troca
o Ministério da Educação levou lá
para dentro pessoas do “Todos Pela
Educação” para ocupar postos
importantes, estão hoje com a responsabilidade
pela formulação da
política da educação básica. Isso é
no mínimo preocupante.
Revista Adusp. E com relação às
pessoas que estão de fora do governo?
FREITAS. De fora do governo,
eu esperava que as nossas entidades,
sindicatos, associações do campo da
educação ou de atividades próximas,
se organizassem para dar visibilidade
quanto aos riscos dessas políticas.
Revista Adusp. Existe alguma
movimentação nesse sentido?
FREITAS. Muito precária, ainda.
Nos EUA há pelo menos umas
dez entidades organizadas contra
essas políticas. No Brasil, as coisas
são mais recentes, mas há dois anos,
na reunião anual da Associação Nacional
de Pós-Graduação em Educação,
foi criado um movimento de
resistência chamado “Movimento
Contra Testes de Alto Impacto na
Educação”. Ainda está em fase organizativa,
tem procurado trazer
essas informações que mostram os
limites dessas políticas públicas que
estão sendo apresentadas como solução
para a educação brasileira,
pelos reformadores empresariais.
A própria Associação Nacional de
Pós-Graduação, a Associação Nacional
de Política e Administração
em Educação (ANPAE), a Associação
Nacional pela Formação dos
Profissionais da Educação (Anfope)
e os Centros de Estudos Educação
e Sociedade têm feito seminários
para análise dessa problemática.
Creio que o próximo número (119)
da revista Educação e Sociedade
traga um dossiê sobre essa questão,
inclusive com balanço sobre a política educacional americana.
Aqui no Estado de São Paulo,
a Apeoesp-Sindicato dos Professores
do Ensino Oficial do Estado de
São Paulo e a Apase-Sindicato dos
Supervisores de Ensino do Magistério Oficial no Estado de São Paulo,
entre outros, têm feito um esforço
muito grande em divulgar críticas
a essas políticas. Isso é muito importante
porque essas políticas às
vezes têm atrativos que precisam
ser desconstruídos, muitas vezes
podem parecer benefício extra para
os docentes, como é o caso dos “bônus” para professores, mas que não
contam para aposentadoria, entre
outros fatores.
“Querem copiar para
dentro da escola o modelo
empresarial: demitir e
admitir professores sem
estabilidade, como na CLT.
O ideal para os reformadores
empresariais é poder
demitir aqueles que não
ensinam segundo os padrões
que eles estabeleceram,
independentemente das
condições de trabalho. Se há
estabilidade, não podem”
Revista Adusp. No seu entendimento,
essa agenda empresarial
assenta no tripé responsabilização,
na esfera da União, meritocracia e
privatização, na esfera dos Estados.
Em que consistem e como são operadas
essas políticas ou conceitos?
FREITAS. Esses três conceitos,
responsabilização, meritocracia e
privatização, são tentativas de interpretar
a política dos reformadores
empresariais, compõem a estrutura
dessas propostas. Pela responsabilização
você cria uma lógica de
que os professores e a escola são
responsáveis pelo desempenho dos
alunos, com isso encontra-se um
culpado para os problemas da educação.
A culpa é desviada do Estado
para a escola e para o professor.
Então é um processo de responsabilização
do outro. Os Estados
lavam as mãos, muitos não querem
nem pagar piso salarial, não cuidam
das condições de trabalho e querem
que a responsabilidade seja do outro,
da escola ou do professor.
Esse processo de responsabiliza-
ção pode ficar mais grave no Brasil
porque temos em tramitação, em
comissão especial no Congresso, a
nossa Lei de Responsabilidade Educacional
(PL 7420/06), que está sendo
formulada nesse momento. A gente
está com atenção no PNE, mas estamos
esquecendo da Lei de Responsabilidade,
que tramita na sala do lado
(em Comissão Especial da Câmara
dos Deputados). Então, por aí poderemos
ter surpresas nessa questão
da responsabilização. Eu não tenho
notado uma participação crítica dos
professores e das entidades como deveria
haver em relação a essa lei.
E você tem a questão da meritocracia,
que consiste em entender
que o problema educacional se resolve
se você implantar o pagamento
dos professores por mérito. Isso,
basicamente, significa destruir a
ideia de que o professor tem de ter
estabilidade no emprego. No fim é
isso que se quer, copiar para dentro
da escola o modelo empresarial,
em que você pode demitir e admitir
professores sem estabilidade, como
qualquer contratação via CLT. Essa
é a política global que começa pagando
bônus, e evolui para a precarização
do trabalho, porque o ideal
para os reformadores empresariais
é poder demitir aqueles que não
ensinam segundo os padrões que
eles estabeleceram, independentemente
das condições de trabalho.
Se há estabilidade, não podem.
Nova Iorque publicou agora a
avaliação de 18 mil professores no
jornal da cidade, com nome e tudo.
A ideia é desmoralizar o professor.
Fragilizá-lo. Isso é um pacote
que inclui também o apostilamento
das redes, que é outra indústria,
fortíssima,que fornece apostilas para
as redes. A ideia que se tem é
que não precisa de um professor
muito elaborado para seguir uma
apostila em sala de aula, não entendem
o professor como profissional,
mas como um tarefeiro, pode até
ser um tutor, nem precisa ser professor.
Para isso, então, se tiver uma
pessoa movida a bônus e uma apostila,
é o suficiente. Acredito que
estamos vivendo um processo que,
se prosseguir, vai destruir o sistema
público de educação brasileiro, como
destruiu nos EUA.
. Revista Adusp. O senhor caracterizou
o INEP como “uma caixa preta conectada à indústria
da avaliação”, capaz
de abrigar distorções como
a contratação de empresas
para fazer cálculos
relativos ao ENEM, e
denunciou o fato de que,
além de não haver divulgação
da confiabilidade
técnica no processo, as
bases de dados utilizadas
no ranqueamento não são
colocadas à disposição
dos pesquisadores independentes.
O que precisa
mudar no Instituto Nacional
de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio
Teixeira?
FREITAS. Primeiro,
precisaríamos avaliar se é
esse mesmo o caminho, da avalia ção censitária, que queremos para a
educação brasileira. Não sou contra
a avaliação, nem contra o monitoramento
de políticas públicas, mas ela
não precisa ser censitária, atingindo
todos os alunos de todas as escolas,
porque isso gera ranqueamento.
Testes são imprecisos e o ranqueamento
é sempre muito problemático.
Se você faz o monitoramento da
política de forma amostral, impede
o ranqueamento e obtém a mesma
informação que precisa do ponto
de vista da política pública. É isso
que a Finlândia faz, avaliações
amostrais, e é uma das melhores no
PISA — não só por isso, há outros
fatores. Avaliar, como faz a Prova
Brasil, censitariamente, não é condição
necessária para melhoria. Você
gasta muito dinheiro, enquanto
a avaliação amostral é muito mais
barata, não tem o problema do ranqueamento
e fornece base para monitorar
política pública, avaliar de
um ano para o outro como as coisas
estão caminhando etc.
“O ranqueamento produz
a concorrência, a disputa,
que não é típica da área
educacional. O segmento
educacional não se comporta
como o empresarial, dos
negócios, em que a divisão é
entre ganhadores e perdedores.
Na educação não podemos
tratar as pessoas como
ganhadores e perdedores”
Revista Adusp. O ranqueamento
não é interessante
porque tem margem
de erro, e o que mais?
FREITAS. Também porque
produz a concorrência,
a disputa, que não é típica
da área educacional. O segmento
educacional não se
comporta como o empresarial,
dos negócios, em que a
divisão é entre ganhadores
e perdedores. Na educação não podemos tratar as
pessoas como ganhadores e
perdedores. Se você introduz
a concorrência na área
educacional gera essa necessidade.
As escolas não
podem ser colocadas em
um processo concorrencial,
mas sim de colaboração dentro delas
e entre escolas.
Mesmo comparado enquanto
um processo censitário com o que
outros países fazem, veremos que
no Brasil o INEP não faz divulgação
de relatórios técnicos que
possam permitir uma avaliação
da “saúde” das avaliações que faz.
Há critérios técnicos para se “avaliar
a avaliação” e nós não conhecemos
esses indicadores. Eles não
são divulgados. Se você faz um
teste, precisa divulgar o índice de
confiabilidade desse teste, como
ocorre com os exames laboratoriais
de saúde. O aluno deveria
saber isso. Essas coisas não são
transparentes no Brasil.
Só farão isso se tiver lei que exija,
como nos EUA, onde você tem
que divulgar os resultados de uma
determinada forma e isso implica,
por exemplo, indicar o nível desagregar dados,
ou seja, em vez de apresentar
uma média nacional mostrar o que
acontece com populações específicas.
E o INEP não só não divulga
esses dados técnicos como também
demora muito para processar os
testes. Quando os dados chegam
à escola, o professor já mudou, o
aluno também.
Revista Adusp. No debate com
o deputado Angelo Vanhoni (PTPR),
relator do PNE, o senhor chamou
atenção para o problema da
superlotação em sala de aula. Há
visões conservadoras na sociedade
que vinculam a queda na qualidade
do ensino público ao ingresso massivo,
no sistema, dos estratos mais
pobres da sociedade, já que não haveria
como atender com qualidade
os enormes contingentes populacionais.
Que acha disso?
FREITAS. É claro que quando
se resolve ensinar a pobreza,
a coisa muda de figura. Ensinar
ricos ou bem posicionados socialmente
é mais confortável, porque
sabemos que há uma relação entre
fracasso e nível sócio-econômico.
E nível sócio-econômico mais baixo,
em média, tende a estar pior
posicionado nas avaliações. Então
quando a escola pública foi ampliada
em sua base, obviamente os
professores tiveram à sua frente
uma outra população, o que exige
formas diferenciadas de lidar com
a questão educacional, exige tempos
diferentes de aprendizagem.
Nesse aspecto se você superlota
a sala de aula, o docente tem
mais dificuldade de fazer o acompanhamento
das dificuldades dos
alunos. Isso é algo que não precisa
de nenhum grande estudo, é senso
comum. Uma das coisas que faz a
Finlândia ser topo nas avaliações
internacionais é uma decisão que
ela tem de não ter salas com mais
de 24 alunos.
“A Finlândia tem salas
pequenas, boa formação
dos profissionais, não
faz testes censitários.
Quando perguntamos aos
responsáveis pela educação
qual é o segredo do sucesso,
eles dizem: ‘Nós confiamos
nos nossos professores’. A
política pública lá é feita
com os professores e não
contra eles”
Revista Adusp. Que outros
exemplos práticos o senhor teria
para que o Brasil pudesse ter uma
educação com mais qualidade?
FREITAS. Há muitas possibilidades
que não precisam estar
apoiadas nessas políticas dos reformadores
empresariais. A Finlândia
é um exemplo típico porque
está muito bem colocada no
PISA e não segue a política dos
reformadores empresariais. O que
ela tem: salas pequenas, boa formação
dos profissionais da educação,
não fazem testes censitá-
rios. Tem também uma decisão
importante. Quando perguntamos
aos responsáveis pela educação na
Finlândia qual é o segredo do sucesso,
eles dizem: “Nós confiamos
nos nossos professores”. Ou seja,
a política pública lá é feita com
os professores e não contra eles.
E também temos o Uruguai, aqui
pertinho. No PISA, o Uruguai e o
Chile são os melhores da América
Latina. O Chile segue o modelo
americano, mas o Uruguai não, e
é melhor em matemática do que
o Chile e segundo atrás do Chile
em leitura. No Uruguai é proibido
divulgar nomes de escolas, professores
e alunos que participam dos
processos de avaliação. E a educação vai bem.
Revista Adusp. E quando os
governos justificam que não conseguem
elevar a qualidade da educação
porque o custo é muito alto
e não podem fazer mais investimentos?
FREITAS. Tem uma frase, que
não me lembro de quem é: “Se a
educação é cara, experimente o
custo da ignorância”. E precisa de
dinheiro mesmo, só pensa o contrário
quem tem uma visão estreita
da educação. Para alguns, a educa-
ção já tem dinheiro suficiente e a
questão é melhorar a gestão. Mas
educação de qualidade custa, custa
caro. Se você tem uma concepção
de educação ampla, democrática
e exigente, então é caro. Então é
preciso 10% do PIB mesmo. Ainda
mais para quem tem uma dívida histórica
com a educação, como nós:
7,5% vai ser muito pouco, porque o
passivo é muito grande.
Fonte; Outubro 2012 Revista Adusp