terça-feira, 19 de outubro de 2021

A primeira Olivetti ninguém esquece

    

   Por Marcílio Costa*

Esta é uma conversa que parece de velho porque o assunto é velho, mas juro que não é tão antigo assim e posso provar. Incluindo a turma da minha geração - vixe que conversa de velho! - e os mais vividos de tempos atrás que com certeza vão entender o que eu vou contar, a turma mais jovem, pelo menos o pessoal da casa dos 30 anos em diante, também já deve ter ouvido falar ou, quem sabe, visto a foto no Google, o oráculo que tudo sabe e tudo vê. Só pra aguçar a curiosidade, a gente vai falar de datilografia, papel carbono, mimeógrafo e coisas tais, que hoje certamente fazem parte de algum museu perdido por aí ou na crônica de um moleque sessentão. Lá em Jaguara, a terra das minhas histórias de infância, acredito que só tinha uma máquina de escrever - ou no máximo duas -, já que aquele equipamento não tinha tanta utilidade por aquelas bandas. Era a máquina de escrever de Seu Nelito, que a usava no cartório para aprontar os documentos como escrituras de compra e venda de imóveis.
Posso dizer que foi naquela máquina que dei meus primeiros passos com as letras e daí em diante ela entrou de vez em minha vida até chegar nas redações do jornalismo e fazer parte da minha rotina profissional por anos a fio. Na máquina de Seu Nelito, uma Olivetti 44 verde de fabricação italiana, me tornei um bom catador de milho, daqueles que buscavam letra por letra com os dedos indicadores das duas mãos numa velocidade razoável capaz de transcrever textos numa folha de papel ofício que eu imaginava ser jornais. Quando não estava na rua jogando bola ou procurando o que fazer meu mundo dentro de casa muitas vezes era pegar a máquina e criar coisas, nem que fosse um caça-palavras igual aos da revista O Cruzeiro ou até mesmo reproduzir desenhos em forma de letras aproveitando os moldes de ponto de cruz que vinham nas revistas de bordado de minha mãe. Algumas vezes a máquina de escrever me rendeu um dinheiro também. Fazia provas para uma professora da zona rural. Sem mimeógrafo - quem lembra ou conhece esse equipamento jurássico? -, datilografava cada prova e para ganhar tempo recorria ao papel carbono para reproduzir duas cópias por vez. Um trabalho danado, mas que fazia com todo gosto não apenas pelo dinheiro, mas pelo prazer de usar meus parcos conhecimentos reprográficos (agora exagerei, né?).
Pra quem não conhece ou não se lembra, uma máquina de escrever era um avanço na reprodução de texto por sua praticidade e por ser portátil, fácil de carregar e não precisar de energia elétrica. Exagerando um pouquinho, era como ter uma impressora acoplada no computador que imprimia automaticamente à medida que a gente escrevia, sem correr o risco de ser atacado por um hacker. Mas ser um datilógrafo tinha lá seus problemas. O mais grave era praticamente não poder errar as palavras, embora isso fosse impossível. Corrigir uma letra era uma operação que não tinha um bom resultado. Usar a borracha terminava borrando o texto. Tinha um corretor líquido, que vinha num frasco parecendo esmalte de unha, mas que também não resolvia muito, sem falar nas letrinhas que saltavam fora do lugar de tanto uso e uma fita que melava a mão da gente toda na hora de trocar. Hoje em dia, esta é uma operação anacrônica, como comparar a descoberta da escrita 3.500 anos antes de Cristo, quando os registros eram feitos em argila.
Meus conhecimentos de catador de milho já não eram mais suficientes quando estava para completar o ensino médio no Colégio Estadual de Feira de Santana. Era preciso fazer um curso de datilografia e me tornar um digitador de verdade, pré-requisito para concluir os estudos, ou - quem sabe - fazer um concurso público e garantir um bom emprego público. Pra mim, tinha chegado a hora da verdade. Teria que ir para o melhor curso de datilografia da cidade, mas o problema é que eu morria de medo da dona da escola. Como eu já a conhecia porque foi nossa vizinha, sabia da sua fama de durona e exigente, de dar esporro e esbravejar pra valer se o aluno não fosse nota 10. Como sabia também que era isso que fazia a diferença na sua escola, lá fui eu enfrentar dona Gilza Melo, uma senhora que impunha respeito logo de cara e de quem fiquei fã. Ela botava a gente numa disputa toda sexta-feira para ver quem escrevia mais rápido, sem erro, é claro. Eu fazia incríveis 130 toques por minuto, ou seja, datilografava 130 vezes a cada 60 segundos e disputava pau a pau com meus colegas de escola que também frequentavam o mesmo curso. Entrei um catador de milho e saí um datilógrafo de primeira, lições que valem até hoje e deixam de boca aberta a turma que me vê escrever no computador e conversar ao mesmo tempo sem olhar para o teclado.
Pouco tempo depois de me “formar” em datilografia, as minhas novas habilidades já me garantiram alguma vantagem. Primeiro foi num concurso para estagiário da Secretaria da Fazenda do Estado que disputei e a datilografia fez diferença. Passei em quarto lugar disputando com um monte de jovens que também buscavam um espaço que garantisse uma nova experiência e rendesse um dinheirinho bem curto. Foi a datilografia que me garantiu um lugar mais tranquilo no Exército. Ainda recruta e doido para escapar da rotina de exercícios e castigos que são impostos no início dos treinamentos militares, cheguei a pensar em ir para cozinha do quartel para fugir daquilo, mas foi graças a um teste de datilografia que fiquei com a única vaga no comando da companhia onde servia, o que significava algumas regalias e um trabalho menos desgastante.
Quando entrei no jornalismo a máquina de escrever ganhou uma importância ainda maior. Passou a fazer parte da minha vida todos os dias, tanto no impresso como na TV Subaé, que nos primeiros anos de existência tinha em sua redação máquinas de escrever. Duas delas eram especiais. Tinham as letras bem grandes para que os apresentadores dos telejornais pudessem ler com mais facilidade o texto que aparecia no teleprompter, um equipamento que fica em frente às câmeras e ajuda o jornalista na leitura dos jornais. Eu sonhava com uma redação informatizada, mas quando os primeiros computadores foram instalados, cheguei a pedir que estas duas máquinas de letras maiores não fossem levadas para o depósito. Não era nenhum saudosismo. É que eu achava que o computador novo poderia quebrar e seria preciso buscar socorro nas velhas máquinas de escrever. Ainda bem que elas não demoraram muito por lá, mas este ex-catador de milho continua levando a vida em frente a um teclado.

Marcílio Costa, jornalista




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