domingo, 23 de outubro de 2022

Bolsonaro grava vídeo, tenta se descolar de aliado e chama Roberto Jefferson de "bandido" após prisão

 

“TEMPOS ESTRANHOS”


O escritor e filólogo italiano Umberto Eco (5 de janeiro de 1932 – 19 de fevereiro

de 2016), ao receber o título de Doutor Honoris Causa em Comunicação e Cultura pela

Universidade de Turim, Noroeste da Itália, em 10 de junho de 2015, em seu

pronunciamento, fez incisiva crítica às redes sociais enquanto disseminadoras de

informação. Isto porque teriam dado voz, palavra e palco nas telas da Internet para uma

“legião de imbecis” com pretensões de serem portadores da verdade. Reconheceu Umberto

Eco que esses sempre existiram. Todavia, falavam “em um bar e depois de uma taça de

vinho, sem prejudicar a coletividade”. Para o autor de O Nome da Rosa (1980) e de O

Pêndulo de Foucault (1988), entre muitas outras obras literárias, “O drama da Internet é que

ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade”. Convém se fazer um registro aqui:

as redes lucram com a multiplicação aos milhões de inverdades, meias verdades, verdades

fora do lugar, um tsunami de informações replicadas, remunerando monetariamente

também os seus principais porta-vozes. Esses lucros e esses ganhos são espúrios posto que

resultam de atividade que semeia intolerância, ódios e preconceitos, e confunde as mentes,

envenena corações e induz ao erro. O crime está gerando lucros e remunerando.

O mundo em geral e a sociedade brasileira, em particular de 2015 para hoje, 2022,

pioraram muito em termos de capacidade de diálogo e de uma verdadeira comunicação.

Cada vez mais, posições extremadas ganham corpo. Em razão disso, fica muito difícil

discernir entre a verdade factual e a Fake News propriamente dita. A rigor, a verdade em si

parece significar cada vez menos. Vale o que contribui para atingir objetivos, não importam

custos e nem prejuízos. Tudo o que não estiver de acordo com a lógica de certos interesses

é sumariamente negado, seja a Ciência, seja o Papa, seja o Supremo Tribunal Federal, seja

o juiz, seja o professor, seja o vizinho ou até o amigo de longas datas, seja quem quer que

ouse contrariar o interesse em jogo. Daí, o mundo plano, a vacina com seus chips capazes

de quaisquer desgraças que possam acometer a um vivente ou com o poder de converter

vacinado em qualquer aberração da natureza e toda sorte de informações sabidamente

falsas, mas deliberadamente utilizadas, porque úteis a propósitos e que podem se prestar

para corroer a imagem de algum oponente que esteja no caminho, na presunção de que não

advirão consequências pela sua disseminação.

Reduziu-se muito o espaço para o diálogo, para a capacidade de dialogar, de

discutir, de ouvir o contraditório, de argumentar e de ponderar e, havendo argumentação e

fatos, reconhecer que a razão pode não estar conosco. Pais se desentendendo com filhos,

entre irmãos, entre vizinhos, entre colegas e amigos. Há uma dificuldade crescente e até

incapacidade de empatia. Vive-se tempos de certezas indiscutíveis. Ai de quem ousar

pensar diferente. Vive-se tempos em que até mesmo utilizar uma camisa de seu time de

futebol pode implicar riscos à integridade física.

Em matéria de religião e teologia, há quem pareça saber mais que o próprio Papa

sem sequer ler um único livro na área, xingando-o, contestando-o, condenando-o a rótulos

com o propósito de desqualificá-lo.

Em matéria de leis e de justiça, há quem pareça saber mais que os próprios

integrantes do Supremo Tribunal Federal, de quaisquer integrantes de tribunais, de juízes,

caso ousem contrariar interesses.

Vivemos tempos “estranhos”, como diria Marco Aurélio Mello, ex-integrante do

Supremo Tribunal Federal. Tempos muito estranhos em que o respeito ao cargo e à sua

liturgia se perdeu no caminhar que nos trouxe até aqui. Xingamentos de baixo calão passam

à ordem do dia, numa muito estranha nova “normalidade”, sem respeito, sem consideração,

sem escrúpulo. Fulano é isso ou aquilo por ouvir dizer; de tanto repetir, é qualquer coisa

que se queira imputar independentemente dos fatos e é uma condenação inapelável – não há

espaço para a dúvida, não há espaço para argumentos, não há razões, não há salvação nesse

tribunal personalizado de quem se acha contrariado e já decidiu a priori a culpabilidade e

clama por punição sumária. Está condenado ainda que essa condenação se aplique única e

exclusivamente a quem se quer condenar, que seja seletiva. Para os demais em situações

análogas, complacência ao máximo. Crime é o que o oponente faz. Quando feito por algum

aliado, não se aplica o rigor, pelo contrário, se racionaliza com qualquer banalidade apenas

para o silêncio não denunciar a arbitrariedade. Complacência e autocomplacência ao

extremo.

Não se trata de apenas uma questão do país. Por exemplo, entre as guerras que há

pelo mundo, a da Ucrânia ganha relevo pelo potencial de implodir a atual ordem mundial,

condenando o mundo a uma Terceira Guerra Mundial, desta vez nuclear, para azar da velha

Europa e do Hemisfério Norte. No entanto, não há qualquer sinalização para ações

diplomáticas. É como se a velha Europa tivesse perdido o bom senso, a sabedoria, as lições

de sua própria história de conflitos, desgraças e tragédias, e estivesse caminhando

inexoravelmente para o abismo, outra vez mais.

Não que esse fato seja realmente novo, inédito. A Humanidade passa por épocas que

tendem a um maior grau civilizatório e outras, que tendem para graus mais elevados de

barbárie. Nos encontramos neste momento num desses segundos períodos de tempo.

Semelhante ao do presente, seguramente, parece ser o final dos anos 20 e nos anos 30 do

século passado. Esse paralelo parece assustador, por se conhecer as consequências, ainda

que aqueles acontecimentos ora sejam relativizados e minimizados pelo extremismo e pela

desumanização crescente. Parece inerente à natureza humana.

Thomas Morus, na obra Utopia, editada em 1516, falando dessa natureza humana,

afirmou:

Os homens têm gostos diferentes; seu humor é às vezes tão desagradável, seu

caráter tão difícil, seus julgamentos tão falsos que é mais sensato conformar-se e

rir disso do que atormentar-se com preocupações, querendo publicar um escrito

capaz apenas de servir e de agradar, quando ele será mal-recebido e lido com

desagrado.... A maioria se compraz apenas com as próprias obras. Um é tão

austero que não admite uma brincadeira; outro tem tão pouco espírito que não

entende um gracejo. (....) Outros são tão caprichosos que, de pé, deixam de louvar

o que aprovaram sentados. Outros têm seus assentos nas tavernas e, entre dois

tragos, decidem do talento dos autores, pronunciando condenações peremptórias

conforme seu humor, desgrenhando os escritos de um autor como para arrancar

os cabelos um a um, enquanto eles próprios se acham tranquilamente ao abrigo

das flechas, os bons apóstolos, de cabeça raspada como lutadores que não deixam

um pêlo para o adversário pegar eles (Obra reeditada pela LP&M. Porto Alegre,

1997, páginas 11-12).

Essa transcrição de escrito de mais de 500 anos mostra que não há nada de novo.

Contudo, esse mundo de mesquinhez e de miudezas que antes ficava no plano do cotidiano,

dos mundos particulares, com a Internet e suas redes sociais de um lado e a ideologização e

polarização de outro, ganha um insuspeito e grande palco, ganha voz, ganha plateias,

nivelando pelo mínimo tudo e todos. Parece que se adota um comportamento de “massa”

no sentido definido pelo escritor e professor, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura, Elias

Canetti (Bulgária, 25 de julho de 1905 – Zurique, Suiça, 14 de agosto de 1994), em Massa

e Poder (Editora UNB/Melhoramentos. São Paulo, SP, 1983). Há nesse comportamento e

nessas ações extremadas, marcadas pela polarização, componentes de “massa”.

O senso comum, com seus pré-conceitos, suas crendices e seus achismos, toma o

lugar da Ciência. Essa, por parecer muitas vezes se subordinar em primeiro lugar ao lucro,

favorece seu questionamento, desconfiança e mesmo sua rejeição. E a autoridade, seja em

que âmbito for, só o é enquanto validar e contribuir para se atingir objetivos. Sendo assim,

adeus ritos e liturgias. A vulgarização e a banalização se impõem como o novo referente. O

velho bom senso marca sua presença sobretudo pela sua falta. Fica cada vez mais distante,

no passado, a distinção entre cultura superior e cultura popular. O senso comum vai pouco

a pouco impondo a sua tirania e seu domínio, e a Internet com suas redes sociais está

viabilizando esse domínio.



Agenor Gasparetto
Sociólogo
Itabuna, 22 de outubro de 2022

Flávio Dino: cenário do segundo turno não sinaliza virada para Bolsonaro

 

JORNAL DAS PRAIAS VIVA 72 ANOS DE IBICARAÍ

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